QUEM TEM RAZÃO? AS MÃES OU AS FILHAS?

MARIA LUCIA DAHL

Uma é mãe, a outra é filha. Uma, a extensão da outra, difícil destino que se entrelaça, revolta-se, recusa-se, esperneia, reflete-se, trapaceia. Uma é a outra amanhã, outra foi aquela ontem. Uma sabe, intui, adivinha o que a outra esconde, inverte, imita, finge que não é. Uma, menina; outra, mulher.

Brincando de casinha, de boneca, procurando estrela do mar, fazendo castelo, aprendendo a nadar.

- Não quero comer, não quero.

- Come os legumes, eu espero. Olha só o aviãozinho. Anda, vai logo, come, senão o aviãozinho some!

À noite a mãe conta história. A filha tem medo da bruxa.

- Que maldade, mamãe, puxa!

- Não tem que se preocupar! Branca de Neve caiu dura, mas chega o Príncipe, e a coisa toda muda de figura...

Se a mãe sai, a filha lhe deixa bilhetes presos na parede e fica esperando a mãe, balançando-se na rede.

- Espera, não lê agora. Ainda não está na hora. Assim que a gente deitar você pode começar.

Saem, riem, se completam. Não querem saber de ninguém. Ficam as duas muito bem.

A mãe veste a blusa da filha; a filha, a saia da mãe - mãe e filhas refletidas numa inversão divertida.

Mas a filha vai crescendo e a mãe nem vai percebendo.

A mãe corta o cordão umbilical da filha quando esta nasce. A filha, quando adulta, corta os laços. A mãe, pra existir, se dá à filha. A filha, pra poder viver, a rejeita.

Em que momento da vida deixaram de ser cúmplices? Quando é que pararam de se divertir? Contar histórias? Trocar de roupa, rir? Desde quando que a mãe chora? Quando é que a filha foi embora?

Uma já viveu ao seu modo o que a outra vive agora.

A filha é a criança da mãe; a mãe, o super-ego da filha.

A filha se enche de impaciência diante da mãe; a mãe, de amor pela filha. Ambos os sentimentos se extrapolam em ninharias ridículas. Uma fez isso, outra aquilo. Uma agiu assim, outra assado.

- Olha, mãe, tudo acabado.

Quem terá razão, as mães ou as filhas?

A filha não agüenta mais nada. A mãe sempre agüenta mais uma. As dores são ondas que oscilam de intensidade. Uma ou outra mais forte tira-lhe o fôlego, joga-a no chão. Nada que não a faça voltar à tona, ver de novo a onda verde, retomar a respiração.

A filha nada contra a mesma maré que um dia embrulhou a mãe. A mãe estende-lhe a mão, delicada. A filha recusa, indignada.

- Me deixa nadar sozinha.

Sempre a mesma ladainha...

Quantas ondas grandes a mãe teve que furar? Quantas arrebentações driblar? Onde estará ela, a filha? Ali boiando, esquecida, e a mãe a se preocupar que se afogue, nas ondas verdes da vida.

- Me empresta o carro pra eu ir à festa?

- Por que não põe uma roupa mais transada, uma blusa decotada, um vestido de outro tom? Minha filha, não acredito: cê vai sair sem batom?

- Ai, meu saco, vou-me embora. Dá pra me emprestar agora?

- Como é que foi o trabalho? Cê fez aquela leitura?

- Mãe, foi tudo uma chatura. Anda mãe, cadê a chave? Estou atrasada. Ave!

- Queria saber da peça.

- Já disse que é chata à beça... Anda, mãe, que eu tô cansada e ainda por cima com fome...

- Então dorme aqui, vê se come...

- Esquece. Não quero ficar.

- Pena... Tinha tanta coisa pra contar...

- Ora, mãe, para de fazer drama... Cê quer mesmo é cair na cama.

- Já voltou a essa hora?

- Se não quiser, vou-me embora...

- Levei um susto, foi isso. É que você me acordou...

- Dorme de novo, eu já vou...

- Vai de novo viajar?

- E você? Me controlar? Saco, tá mais que na hora. Escuta, mãe, vou-me embora.

- Não esquece de fechar a porta. Apagar a luz... Cuidado com a violência...

- Ai, mãe, tenha paciência...

Em cima da mesa um bilhete: ''Mãe, desculpe o mau humor, mas é que eu ando uma pilha...''

Quem tem razão? As mães ou as filhas?

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